Prelúdio 5, Carmine Marrazzo

Reinvenções de um destino

De que modo os psicanalistas podem sustentar seu desejo, desejo de analista, com seus paradoxos?A questão é crucial e envolve a “chance que a análise continue a dar dividendos no mercado”1, e as condições para sua mesma sobrevivência.

Freud, o primeiro, tocou na questão, escritos e correspondências o atestam. E quando somos consolados por um otimismo singular a cerca do destino de sua invenção, o psicanalista dá crédito de uma “notável disposição” para aceitar seu “destino”, “destino daqueles que estão em oposição solitária”2 . Então, como entender esta “notável disponibilidade” se “não há nada na estrutura do homem que o predisponha à psicanálise”?3

Com Lacan, avançamos. Ele apostou em despertar o movimento analítico do fracasso de uma formação que garantia ao analista “uma rotina que  gera minha comodidade”4, e sua crítica obstinada trouxe novamente a resistência à psicanálise na própria psicanálise, antes de qualquer outro lugar.

Acreditara que sua inédita vissicitude institucional respondesse àquele destino freudiano. Mas se se tratou de  “uma oposição, sozinho”, certamente não foi só uma oposição, mas outro modo de fazer existir o Outro, pois a colocação em função do “desejo do analista”, esta jóia do final da análise, implica antes um autorizar-se sem “assegurar-se do Outro”5, não mais no campo garantido do saber do Outro, mas no campo do ato. Uma “notável disponibilidade” ao ato analítico.

Então, se ato-riza? “O psicanalista […] fica apenas no lugar do ator, na medida em que o ator basta, por si só, para sustentar essa cena”6. Por essa via, os paradoxos do desejo do analista não são outros que os “paradoxos do ato analítico”? Qual ato “que nós supomos do momento eletivo em que o psicanalisante passa a analista”7, “a cujo, o analista opõe o mais insensato desconhecimento8 e de cujo “tem horror”9, acte-horr, e que o fixa no lugar de “rebotalho da suposta (humanidade)”.10

Mas se tal posto não é desejável, como pode o analista desejá-lo, continuar a desejá-lo? Deve ser a decisão de uma reinvenção. É assim que entendo essa “coacção”:” Que cada analista seja forçado – porque precisa  ser forçado –  a reinventar a psicanálise, a partir do que foi capaz de obter por ser, ele mesmo, psicanalisante”.11

Pode a Escola do Passe sustentar a aposta de uma decisão, sempre contingente, trazendo consigo o entusiamo?

Tradução: Andréa Brunetto


1 LACAN, J. Nota italiana. Outros escritos. Rio de Janeiro: JZEditor, 2003, p. 314

2 FREUD, S. Resistência à psicanálise (1924[1923]). Vol. XIX. ESB. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976, p. 275. NT: mantivemos nessa tradução a palavra destino, pois o autor a usa em dois momentos no parágrafo. Na tradução em português do texto freudiano está “situação”. E a “notável disponibilidade” está traduzida na Imago por “grau de aptidão”. Por isso, decidimos manter a tradução do autor e fazer a referência à página do texto de Freud nas Obras Completas da Imago Editora.

3 Correspondence S.Freud – L. Binswanger (1908-1938), Calmann-Levy, Paris, 1992, p. 134

4 LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. Outros escritos. Rio de Janeiro: JZEditor, 2003, p. 264.

5 LACAN, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo. Escritos. Rio de Janeiro: JZEditor, 1998, p. 839.

6 LACAN, J. O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro . Rio de Janeiro: JZEditor, 2008, p. 338

7 LACAN, J. O ato psicanalítico. Resumo do Seminário 1967-68. Outros escritos. Rio de Janeiro: JZEditor, 2003, p. 371.

8 LACAN, J. O Seminário, livro 15: o ato psicanalítico. Inédito, aula de 29 de novembro de 1967.

9 LACAN, J.  Lettre au journal Le Monde, 24 gennaio 1980

10 LACAN, J. Nota italiana. Op. Cit., p. 313.

11 LACAN, J. Sulla trasmissione della psicoanalisi (1978), in La psicoanalisi, n°38, Astrolabio, Roma, 2005,  pp. 13-16