Prelúdio 3, Andréa Brunetto

A problemática do desejo

A problemática do desejo, insiste Lacan, é sua excentricidade em relação a qualquer satisfação.1 Seguindo o Seminário As Formações do Inconsciente é excêntrico porque desliza sempre, almejando um objeto, mas que nunca é Isso.

O inconsciente é um lugar outro, estrangeiro, que só se manifesta como tropeço, rachadura, como alega Lacan no Seminário 11: uma zona de larvas, um limbo, um centro incógnito.2 A condição errática é própria do humano, imerso na linguagem e fundado por traços significantes. É sua alteridade radical. Lacan sustenta que o sujeito é apenas sujeito do discurso, arrancado de sua imanência, condenado a viver em uma espécie de miragem que não o faz apenas falar de tudo que vive, mas viver no jogo entre dois polos.3

Em um de seus polos se afirma com os significantes, com seu Wunsch, e no outro, em que a verdade escapa, se esvai no tonel das Danaides de um gozo que se perpetua? Assim entendi “o jogo entre dois polos”. E por esse viés, o paradoxo do desejo é não ser mais do que um semblante?

Em português temos um ditado para quando as coisas estão difíceis: se ficar o bicho pega, se correr o bicho come. Pegar não é bater, como no espanhol, é segurar. O bicho segura ou come. Zeca Baleiro, famoso cantor, quase lacaniano, de tanto que brinca com as palavras em suas músicas, complementa assim: o bicho come. Come, back, again. Versão um pouco diferente do ‘a bolsa ou a vida’, pois enfatizado um sentido sexual. Pegar tem sido usado, cada vez mais, para falar do encontro sexual. Pegar é também transar.

E lembrando o pegar, há uma música de outro cantor brasileiro, Seu Jorge, muito tocada nas rádios do país no momento, cuja letra fala de um homem que está atraído pela amiga de sua mulher, que para complicar as coisas é muito bonita, e a beleza feminina mexe com seu coração. E vive o seguinte dilema: peco ou não peco? Peco ou não peco? Ele vai contando a história de seu dilema diante do desejo e se perguntando sobre sua posição diante do pecado. E ao cantar, equivoca o pecar com o pegar. E escutamos um pego ou não pego? Na letra da música está o tempo todo o verbo pecar, mas em alguns momentos Seu Jorge canta pego ou não pego? (Ou será que eu escuto um pegar que não tem? Meus colegas brasileiros vão saber responder a minha dúvida. Será?).

No pecado, hamartia – em grego, relembra Lacan, é falta4 – ou na pegada (marco, traço) estamos no semblante de que é Isso?




1 J. Lacan. O Seminário 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: JZEditor, 1999, p. 350.

2 J. Lacan. O Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: JZEditor, 1985, p. 28.

3 J. Lacan. O Seminário 9: A identificação. Aula de 13 de dezembro de 1961. Inédito.

4 J. Lacan. O Seminário 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: JZEditor, 1991, p. 102.